segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Desafios da Tecnologia

Desafios da Tecnologia
Laptops, internet e telefones celulares oferecem possibilidades há poucos anos inexistentes, tornam o trabalho mais rápido e, em muitos casos, mais fácil. Mas também apresentam desafios para o psiquismo.
Scientific American - por Annette Schäfer
Quem tem menos de 30 anos mal consegue imaginar um tempo sem computador, internet ou celular. E não é raro que se questione como há poucas décadas inúmeras atividades eram desempenhadas sem o auxílio da tecnologia disponível atualmente. Pesquisas escolares, por exemplo, eram muito mais demoradas e trabalhosas, já que não havia a enorme quantidade de informações disponíveis hoje na rede. No tempo do papel e da máquina de escrever qualquer equívoco, que já pode ser apagado com o simples toque numa tecla, significava rasuras e exigia o uso dos corretores líquidos - o que, invariavelmente, comprometia a apresentação do trabalho.
Mais que facilitar a elaboração de textos, atualmente é possível controlar estoques, movimentação comercial e, em poucos segundos, rastrear bancos de dados on-line, sites e armazenar uma infinidade de dados em sistemas que, se estivessem no papel, certamente ocupariam inúmeras salas. Se antes um jornalista levava vários dias para encontrar os mais conceituados especialistas em determinada área para uma entrevista, hoje uma breve pesquisa virtual oferece dicas bastante úteis de como fazer contato.
Na Alemanha, uma pesquisa realizada com 34 mil trabalhadores pelo Instituto de Pesquisas Profissionais e de Mercado, em 1999, mostrou que 62% dos assalariados daquele país - o que equivale a mais de 20 milhões de pessoas - faziam uso pelo menos eventual de máquinas ou equipamentos informatizados em sua atividade profissional. Dentre eles, mais de 11 milhões, inseridos nas mais diversas funções, eram categóricos: acreditavam não ter nenhuma condição de trabalhar sem computadores.
É indiscutível que de diversas maneiras a "colega" tecnologia tornou o trabalho bem mais rápido - e, em alguns casos, bastante flexível. Mas tanto para a psique humana quanto para as organizações essa nova realidade representa um enorme desafio. Afinal, as aquisições de qualquer ordem têm um preço. Nesse caso, podemos citar os inconvenientes da torrente de informações que chega até nós quase em tempo integral, o isolamento social e a confusão entre vida privada e trabalho. "Os desafios impostos à competência técnica de profissionais tiveram um aumento estratosférico nos últimos anos; tecnologias disponíveis tornam-se cada vez mais variadas, commplexas e interligadas. E espera-se que profissionais aprendam rapidamente a lidar com essa nova realidade", comenta o professor de sociologia da tecnologia e da indústria Günter Voss, da Univerrsidade de Chemnitz.
Do deserto à selva
Segundo Voss, há alguns anos, havia um grande problema comum às mais variadas áreas: reunir dados sobre qualquer assunto. Atualmente, a escassez foi substituída por um asfixiante excesso de ofertas - uma verdadeira selva de informações. Em muitas caixas de e-mail acumulam-se dezenas ou mesmo centenas de mensagens. Ante esse excesso, são postas à prova diariamente as capacidades de seleção e avaliação de qualquer pessoa que trabalhe conectada à rede internacionaL O questionamento é inevitável: a que comunicado dou atenção e qual mensagem ignoro? Como posso deixar de receber informações e notícias que não me interessam?
O que convém passar adiante? Ao fim de algum tempo, uma conclusão parece inevitável: é impossível absorver todas as que chegam até nós. E, para algumas pessoas, deparar com essa limitação deflagra a sensação (ainda que equivocada) de incapacidade ou ineficiência. É como se sempre estivéssemos em débito com a tecnologia.
Queda na produtividade
Fazer um PC voltar de alguma pane ou decifrar um programa de texto coalhado de erros criptográficos são desafios do trabalho cotidiano que nosssos avós nem imaginavam que alguém pudesse enfrentar. Dados empíricos indicam que funcionários de empresas são obrigados a destinar cerca de um décimo da jornada diária para lidar com esse tipo de adversidade. Além dos custos desse conflito entre homem e máquina para os empresários, há outro inconveniente: o intenso stress vivido pelos profissionais.
O coordenador de psicologia orgaanizacional e do trabalho Dieter Zapf, da Universidade Johann Wo1fgang Coeethe, em Frankfurt, pesquisou minuciosamente a relação entre panes de commputador e stress. Seus estudos mostram que a ocorrência frequente desse tipo de problema afeta a qualidade de vida do trabalhador e, indiretamente, contribui para a apatia, a falta de iniciativa, o desinteresse pela atividade profissional e a queda na produtividade.
Como a correção das falhas costuma levar algum tempo, durante esse período a atenção do profissional se volta para o equipamento, e o trabalho propriamente dito fica em segundo plano. Tentando solucionar o problema, os mais ousados correm o risco de acionar algum dispositivo errado sem saber como voltar à posição anterior e, num piscar de olhos, se ver encalhados nos bancos de areia do mundo digital. "Os erros acontecem em cascata. Uma vez que o usuário sai do ambiente do programa com o qual está habituado, acumulam-se erros sobre erros, porque a pessoa é superexigida pela situação", diz Zapf.
Em geral, só quando o usuário não consegue continuar sozinho é que pede ajuda a um colega ou algum técnico do departamento de informática. Além do tempo que todo esse processo consome, dependendo das características da pessoa e do grau de auto-exigência, há outro agravante: o fato de o funcionário ter de buscar ajuda externa por não connseguir lidar com um problema por si só tende a aumentar seu nível de stress.
Os "mistérios" da máquina também podem acarretar desconfortos psicológicos causados por fantasias irracionais. A alta complexidaade e impenetrabilidade dos microcomputadores suscitam em muitos usuários representações mágicas sobre o seu funcionamento, o que pode despertar medos e inseguranças. O tema motivou um estudo do Instituto de Psicologia e Pesquisa Social da Universidade de Bremen. Um grupo coordenado pelo professor Thomas Leithauser acompanhou durante alguns anos a informatização da administração municipal de Bremen. Ele observou que sobretudo as pessoas inexperientes aventavam com freqüência a possibilidade de apertar uma tecla errada e fazer cair o sistema ou causar a perda de todos os dados. E, mesmo após anos de uso, muitos mantêm associações que revelam insegurança - por exemplo, a imagem do interior de um PC como um labirinto de fios entrelaçados, no qual a pessoa poderia facilmente se perder.
Mais ansiedade?
Mesmo a auto-estima muitas vezes sucumbe no trabalho com a "colega" tecnologia. Segundo Leithauser, as dúvidas a respeito do que de fato aconntece dentro de um computador podem causar reações de alienação. E, não raro, a impressão de completa incapacidade para lidar com tecnologia acomete até os mais capazes. Embora com menos freqüência, o computador também proporciona momentos de poder e triunfo - quando a instalação de um novo software funciona de primeira ou o trabalho em rede segue sem nenhum percalço, por exemplo.
Segundo a Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividades (Sobratt), cerca de 4,5 milhões de brasileiros trabalham em casa. E, por ano, esse número aumenta em torno de 20%. Entre essas pessoas estão prestadores de serviço, empreendedores e até funcionários contratados. Para reduzir custos, cada vez mais empresas preferem que, dependendo da atividade que exercem, os funcionários trabalhem parte do tempo em casa. Entusiasmados com a tranqüilidade que isso pode trazer ou na intenção de conciliar melhor a vida familiar e a profissional, muitos aplaudem a idéia.
Trabalhar amparado na tecnologia - mas não atrelado a um espaço físico específico - significa para muitos a posssibilidade de rotina mais flexível. Para pesquisadores como o sociólogo Frank Kleemann, da Universidade Técnica de Chemnitz Kleemann, porém, esse modelo não significa, necessariamente, melhor qualidade de vida. Pelo contrário: em alguns casos pode implicar uma série de problemas como isolamento, dificuldade de se organizar e sobrecarga de atividades. Afinal, quando o escritório fica a poucos passos da sala de jantar ou do quarto pode ser difícil para alguns encerrar o expediente e evitar fazer "horas extras" em horários em que, em outras circunstâncias, estariam longe da empresa.
Não raro, a nítida separação entre vida profissional e privada desaparece. Além disso, com o trabalho muitas vezes um elemento estranho adentra o refúgio familiar. Crianças pequenas podem ter dificuldade em compreender que o pai ou a mãe estão em casa, mas não disponíveis. "O trabalho a distância traz consigo uma crescente 'empresarização' no modo de conduzir a vida. A lógica da vida profissional, do procedimento e do planejamento auferidos pelo alcance de objetivos é transferida para a esfera privada", segundo Kleemann.
Para ele, o trabalho a distância é um dos grandes responsáveis pela pouca interação entre colegas, o que dificulta a troca de conhecimentos - até porque as pessoas esperam ter um motivo conncreto para fazer uma ligação telefônica ou escrever um e-mail. Com isso, fica limitado o intercâmbio de informações muitas vezes necessárias e o comportamento competitivo aumenta.
Um estudo desenvolvido pela psicóloga social e organizacional Renate Schmook, professora da Universidade de Halle, indica que pessoas que não têm um ambiente profissional específico tendem a se sentir mais inseguras: falta-lhes o feedback imediato, não podem se orientar pelos colegas e a execução de suas tarefas parece apartada do conjunto, o que a longo prazo desperta sensação de não pertencimento ao grupo - enfatizando sentimentos de rejeição e ansiedade.
Estudos desenvolvidos pelo psicólogo organizacional Jürgen Wegge, da Universidade de Dortmund, apóiam o que outras pesquisas, realizadas em várias partes do mundo, têm indicado: a cooperação intensiva entre colegas tende a aumentar o grau de satisfação das pessoas com o próprio trabalho. Isso, porém, não vale para atividades em que o computador desempenha papel central. Segundo Wegge, o funcionário que se encarrega do abastecimento de dados de outros ou precisa de relatórios eletrônicos sobre suas atividades vivencia com freqüência irritações, raiva e angústias, o que costuma provocar dores de cabeça e na nuca, além de mal-estar generalizado. O quadro se torna mais agudo quando a função é desempenhada de maneira solitária.
O correio eletrônico também contribuiu para mudar muito a vida profissional nos últimos tempos. As vantagens da correspondência eletrônica estão ao alcance da mão: escrever um e-mail é simples, ele chega rápido ao destinatário e pode ser feito de qualquer PC que estiver conectado. A pessoa que escreve pode formular de maneira precisa o que pretende dizer, sem ter de se prender a formalismos, como no tempo das cartas. Diferentemente dos telefonemas, quem recebe a mensagem não é importunado e pode responder a seu tempo, do modo que lhe convier.
Mas também causam problemas inesperados. Os comunicados eletrônicos têm um efeito desinibidor, são escritos em tom descontraído, o discurso é articulado de maneira menos formal e as emoções, externalizadas. Os erros de escrita acabam aparecendo mais. Outros estudos mostram que informações negativas (como anúncios de medidas impopulares numa empresa, motivadas por maus resultados) são comunicadas de maneira mais direta e menos cuidadosa que em conversas pessoais.
Sem entonação
O volume de informações que chega aos computadores pessoais é muito maior do que nossa capacidade de absorvê-las. Além disso, os e-mails profissionais podem ser lidos a qualquer momento quando os espaços pessoal e de trabalho estão pouco delimitados - e aí o risco de invasões de privacidade e conflitos aumenta.
Outra característica do correio digital é que, por suas próprias características, faltam a esse tipo de mídia as pequenas indicações não-verbais que facilitam o entendimento. Nas converrsas face a face, a mímica e a linguagem corporal, bem como o modo de vestir, a escolha do local de encontro ou o estado de organização de um escritório são informações preciosas sobre a pessoa com quem se trata. Mesmo em um telefonema, sinais como entonação e intensidade da voz, ênfases e pausas no discurso sinalizam procedimentos. Nos e-mails estão simplesmente as palavras nuas e cruas na tela, à disposição. E facilmente suscitam mal-entendidos. "Por que um colega de repente usa o neutro 'olá', se até há pouco iniciava os e-mails com a palavra 'caro'?" "As palavras digitadas pelo chefe significam que ele está bravo comigo?" "Por que o parceiro de negócios já há dois dias não me responde?" Essas perguntas poodem abrir a porta para interpretações errôneas e irritações.
"Incertezas e dubiedades relacioonadas a e-mails induzem a pessoa que escreve a projetar no receptor suas expectativas, desejos e receios", diz o psicólogo americano John Suler, que pesquisa os aspectos psicológicos do relacionamento virtual na Universidade Rider, NovaJersey. Segundo ele, quem espera que um chefe desaprove seu projeto toma os e-mails que recebe dele como mais críticos do que de fato são. Nesses casos, o funcionário não ouve a mensagem do outro - mas as vozes em sua própria cabeça. E, assim, corre-se o risco de que a tecnologia, que deveria tornar a vida mais connfortável, se transforme em mais um problema a ser resolvido.
De papo com a máquina
De modo geral, o ser humano tem grande capacidade de se adaptar às novas tecnologias. O intercâmbio eletrônico de pensamentos por e-mail, por exemplo, desenvolveu um tipo de comunicação exigente e expressiva, assumindo uma forma de escrita própria, entre a linguagem oral e a escrita. Especialistas em estilo chegaram até a cunhar uma nova classificação: o text talk - a fala pelo texto.
Essa capacidade de adaptação se revela também no embate com um aparelho eletrônico em pane, principalmente computadores. Pesquisadores liderados por Holger Luczak, do Instituto de Ciência do Trabalho da Escola Superior Técnica de Aachen, realizaram em 2003 um levantamento detalhado com 100 pessoas e constataram que quando há algum problema a grande maioria dos usuários começa a "conversar" com suas máquinas. Como se o problema estivesse relacionado a um ser vivo e inteligente, o micro é questionado, xingado ou estimulado. Alguns chegam a pedir que ele "por favor" funcione. "Essa personificação de um aparato tecnológico serve como estratégia psicológica eficaz para diminuir o stress", ressalta Luczak. E nessas ocasiões nem costuma haver preocupação com o discreto olhar de reprovação e outras reações negativas das pessoas à sua volta: segundo o estudo dos pesquisadores de Aachen, as conversas com a máquina são vistas como um comportamento perfeitamente aceitável.
Sobre a autora
Annete Schäfer é jornalista e economista.
Para saber mais
Psicologia e Informática. Rosa Maria Farah e outros. Oficina do livro, 2004.Psicologia e informática: interfaces e desafios. E. Hezberg e H. F. Pinotti Filho. Casa do Psicólogo, 2000.Psicologia, organização e trabalho no Brasil. José Carlos Zanelli e outros. Artmed, 2004.